*Por Edson Luiz Peters e Renato Cabral Bossle
“Era uma vez um jovem guerreiro índio, chamado Quaraçá, que morava com sua gente na floresta amazônica e adorava passear pelas matas tocando sua flauta de bambu. O som ecoava entre as árvores e fazia calar os bichos. Todos gostavam de escutar aquela música. Um dia, enquanto passeava pela tribo, o jovem Quaraçá achou de se apaixonar pela belíssima Anahí, que era casada com o cacique.
O jovem sabia que o seu amor era impossível, e logo a tristeza tomou conta dele. De tanto sofrer, nem queria mais tocar a sua flauta. A tristeza o consumia. Foi aí que ele resolveu pedir ajuda ao deus Tupã. Foi para o meio da floresta, tocou, tocou muito aquela flauta. Chorava e cantava e pedia ajuda.
Tupã ficou sensibilizado com o sofrimento do jovem e resolveu ajudar, transformando-o num pequeno pássaro colorido (vermelho e amarelo, com asas pretas), de belíssimo canto, e deu-lhe o nome de Uirapuru. Naquele dia, Uirapuru voou pela floresta, voltou à tribo, cantou, voou de novo. E assim passou a fazer todos os dias, encantando a todos com seu forte e lindo canto. Toda vez que via a amada, ele pousava e cantava para ela, que ficava maravilhada com o som daquele pequeno e lindo pássaro.
Com o tempo, o cacique da tribo também ficou encantado com o canto Uirapuru. Queria que ele ficasse cantando ali, para sempre. Quis aprisioná-lo, fez uma arapuca, foi a sua procura e perdeu-se na floresta. Dele, ninguém mais teve notícia. Dizem que foi castigo do Curupira, o protetor dos bichos da floresta, que não pode ver animal sofrendo sem ficar danado de bravo.
A bela Anahí ficou sozinha, mas nem teve tempo para a tristeza, porque o Uirapuru chegava ali todos os dias, com aquele canto lindo, para consolar a amada. Mais que isso, ele soltava aquele canto triste, porque acreditava que, assim, ela poderia descobrir quem ele era, e isso quebraria o encanto. Mas o que se sabe é que ele continua cantando nas matas até hoje…”
Lúcia Resende – Cultura, Mitos e Lendas
A lenda acima ilustra a estreita relação entre o pássaro e a floresta onde vive, bem como a interação com a espécie humana. Muito se tem falado ultimamente de desmatamentos na Amazônia, de cortes e derrubadas na mata atlântica, de perda de cobertura florestal, de queimadas, de secas etc. em muitas partes do Brasil, aqui e acolá.
É uma avalanche diária de notícias e críticas aos governos e órgãos de fiscalização ambiental, que segundo a imprensa e ambientalistas não cumprem sua parte e são omissos ou, o pior, estariam a estimular tais prática ilegais e, muitas das vezes criminosas. Não se trata de negar essa realidade perversa, até porque contra fatos, retratados nas imagens de satélite, não há argumento.
Porém, o curioso e até contraditório, é observar que a maioria dessas notícias e críticas reiteradas não se referem à fauna, às inúmeras formas de vida que habitam e convivem nessas matas, que se tornam invisíveis aos olhos da imprensa e até de muitas entidades ambientalistas nacionais e internacionais.
Raras vezes se aborda o prejuízo para a biodiversidade, mesmo assim o conteúdo dessa palavra ainda não é pouco compreendido. Já não seria tempo de todos compreenderem que os ambientes são formados pela harmoniosa relação entre a vegetação e os seres que vivem neste conjunto, seja num deserto ou numa floresta tropical úmida.
Mas, a par desta noção básica, vemos crescer a cada dia a destruição dos ambientes naturais. Normalmente as atenções são voltadas para o desmatamento, a retirada da vegetação nativa, talvez porque salta aos olhos, aparece facilmente nas imagens aéreas, mas pouco se observa e se comenta sobre os demais seres que lá vivem, como se eles facilmente fugissem e logo encontrassem uma nova floresta para morar.
Poucos relacionam as doenças e epidemias, tal como esta que avassala o Brasil neste momento, à destruição de florestas que abrigavam em harmonia vírus e bactérias e milhares de formas de vida. Dizer que a fauna mora na flora parece uma frase infantil, de livro de contos de fadas, mas até na literatura infantil a floresta é mal vista: lá vive o lobo mal, a bruxa que come criancinhas e outras criaturas terríveis. Somos educados para ter medo da natureza, por incrível que pareça, até hoje essas historinhas seguem sendo contadas pelas famílias.
Essas crenças e preconceitos repercutem na vida social, política e econômica, quando vemos conflitos que se extremam entre ruralistas e ambientalistas, como se a natureza fosse a grande inimiga do desenvolvimento para uns e devesse permanecer intocada para outros. Longe do equilíbrio.
Na história legislativa brasileira a natureza não se integra: fez-se um Código Florestal, outro Código de Águas e um terceiro Código de Caça e Pesca, para dar 3 exemplos, como se tudo estivesse divorciado. Como se a flora e a fauna fossem coisas separadas e nada tivessem a ver com o ciclo da água. A atual Lei florestal brasileira (Lei nº 12.651/12), apesar de se referir várias vezes a ecossistema, menciona apenas 2 vezes a palavra animais, indicando domésticos ou exóticos, para dizer que podem ter acesso à água passando pelas áreas de preservação permanente.
Pelo menos a nova definição de Reserva Legal inclui entre suas funções o abrigo e a proteção da fauna silvestre (Art. 3º, III). Parece que alguém pensou na moradia dos bichos. Mesmo depois de um século que se escreveu a palavra “ecologia” e a ciência desvendou que a vida se organiza em ecossistemas, tudo forma um só, que todos os seres vivos compõem a biota e se relacionam reciprocamente com o ambiente que abriga e protege essa vida, ainda assim muitos não conseguem ver que a fauna mora na flora. Até quando vamos olhar para a floresta e ver apenas árvores?
*Edson Luiz Peters é advogado e consultor na AmbienteJuris Soluções Ambientais, ex-promotor de Justiça de Meio Ambiente, professor de Direito Ambiental, autor de diversas obras jurídicas, Mestre e Doutor pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Já Renato Cabral Bossle é biólogo, especialista em gestão de recursos naturais e mestre em ecologia e conservação pela UFPR.